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quarta-feira, 27 de agosto de 2003

Nas arribes do Douro internacional ... em vésperas de meio século!

De 26 de Julho a 3 de Agosto de 2003, entre as duas intensas estadias em Vale de Espinho descritas no anterior post, pegámos na autocaravana para uma digressão pelo Douro internacional, as arribes del Duero. Começámos por Barca d'Alva, onde o Águeda se lança no Douro. Curiosamente, o Águeda e o Côa são rios irmãos, nascendo a pouco mais de 1 km um do outro, em vertentes opostas da mesma Serra das Mesas, correndo por países diferentes, até se verterem ambos no grande Douro.
Por Saucelle, fizemos alto no Camping "Balcón de las Arribes", em Pereña de la Ribera, onde passámos 3 dias de descanso, admirando belas perspectivas sobre o Douro ... e de caminhadas. No dia 28, sozinho, de bicicleta, desci ao Pozo de los Humos, no rio de las Huces, afluente da margem esquerda do Douro, a sudoeste de Pereña. E no dia seguinte desci igualmente ao Pozo Airón, no Arroyo de los Cuernos, a oeste da aldeia. Dois autênticos paraísos escondidos, nas arribes sobranceiras ao Douro. Duas sucessões de piscinas naturais, de cascatas, de verde e de frescura. A partir da meseta seca e quente, aqueles oásis pareciam saídos de um milagre da Natureza.


Pereña de la Ribera - Pozo de los Humus, 28.07.2003
Pereña de la Ribera - Pozo Airón, 29.07.2003
Depois, dia 30, rumámos a terras de Miranda, pela Bemposta e Freixiosa, ao longo dos múltiplos miradouros que se debruçam sobre o Douro. Em Miranda do Douro, fizemos o mini-cruzeiro ambiental que sobe o troço internacional a norte da cidade, apreciando as espectaculares paredes rochosas a pique sobre o rio e a vida da avifauna típica daquelas falésias abruptas.
Mas esta digressão a terras de Miranda teve como razão principal a participação no Festival Intercéltico de Sendim. Cada vez mais apaixonado pela música folk, popular, ou tradicional das comunidades do norte da Ibéria, de raízes celtas, o apelo do Intercéltico de Sendim, então na sua 4ª edição, tinha sido sempre grande desde que se iniciara, em 2000. Os 3 primeiros dias de Agosto foram, assim, de festa intercéltica ... da qual regressámos a Vale de Espinho, conforme já descrito no anterior post.
E no fim do mês migrámos de Vale de Espinho para Santa Cruz, onde este apaixonado pela vida ao ar livre ... iria completar meio século de existência ... reunindo meia centena de familiares e amigos ... entre os quais dois "velhos" companheiros do meu velho Passos Manuel, dos velhos tempos da Espeleologia e dos acampamentos, os únicos de que consegui encontrar rasto! Com muita pena minha, não consegui contacto com o meu velho professor Ribau, que hoje sei que nessa altura ainda estava entre nós...
 
4 de Junho de 2011

quarta-feira, 20 de agosto de 2003

Por trilhos e bredas da Malcata e das Mesas

No verão de 2003, a necessária catarse levou-nos a umas férias sediadas em Vale de Espinho. Acampámos a autocaravana à porta da tia que habitualmente nos dava guarida ... e de lá parti, a pé e de bicicleta, ao desbravar da Serra da Malcata, das Mesas, do Homem de Pedra. A comunhão com a serra dava-me paz, conversava com as águas, com o vento, com as perdizes fugidias ... com a memória de quem tinha trilhado aquelas bredas. Entre uma estadia no final de Julho e outra em Agosto - intervaladas por uma digressão a terras de Miranda - percorri cerca de 170 km, a pé e de bicicleta, pelas "minhas" terras raianas. E a melhor forma de catarse ... é sozinho. Sempre tive bom sentido de orientação, mas tinham entretanto chegado os tempos da navegação por GPS. Há pouco mais de um ano tinha comprado um aparelho Magellan, que já me havia acompanhado à Irlanda e nas primeiras caminhadas com os Caminheiros Gaspar Correia. Na internet, tinha também descoberto o OziExplorer, o software que ainda hoje considero ideal para o pedestrianismo. E tinha conseguido velhas cartas militares das  "minhas"  terras  raianas.  Uma  fase
Cabeço do Clérigo, a caminho de Valverde, 23.07.2003
interessantíssima do estudo dessas cartas foi a confrontação entre a toponímia nelas constante e a tradição oral para os nomes de tantos e tantos lugares que eu iria conhecer e desbravar.
Valverde del Fresno é a povoação espanhola mais próxima de Vale de Espinho ... e há muito que me chamava. Cruzar a raia, pelas velhas "bredas" do contrabando, ou dos tantos e tantos Valespinhenses que tinham olivais em Pesqueiro - o vale fértil para lá da raia - que conheciam os trilhos da serra como as suas mãos, era um apelo há muito sentido. Eu não conhecia ainda a maioria dos trilhos da serra ... mas no dia 23 de Julho parti bem cedo, a pé, para uma jornada que ultrapassaria os 34 km ... rumo a Valverde! O percurso foi o que, na carta, me pareceu mais directo, pela Quinta do Passarinho e Cabeço do Clérigo, onde me esperava a grande descida para o vale de Sobrero ... seguido da subida ao Muro Julian e Rascaderos, antes de descer para Valverde.
Regresso Valverde - Foios: a parede do Picoto, 23.07.2003
Um providencial tanque que virou piscina privativa,
antes de atacar o Picoto...J!
Os primeiros quase 6 km do regresso foram ao longo da estrada Valverde - Navasfrias, com panorâmicas cada vez mais espectaculares sobre Valverde e a planície estremenha, os vales de Corral Hidalgo e Sobrero e os extensos olivais de Pesqueiro,
Vale de Espinho - Valverde e regresso: 34 km, 23.07.2003
com a Marvana ao fundo. Mas depois, já por um estradão florestal a meia encosta ... tinha a impressionante parede do Picoto e Toriña à minha frente. Um providencial tanque de água límpida e fresca permitiu um bom e retemperador banho ... e depois "ataquei" o Picoto, em direcção ao geodésico da Pedra Monteira, na fronteira. Em pouco mais de 1,5 km ... subi 370m de desnível, dos 720m aos 1090m da Pedra Monteira ... onde descansei uns bons 15 a 20 minutos. Esta não tinha sido definitivamente a melhor opção de percurso ... particularmente no regresso...J! Mais tarde viria a ter conhecimento - e a conhecer in loco... - o percurso mais aconselhável de e para Valverde, pelo Piçarrão ... e para o qual me teria bastado continuar o estradão da vertente espanhola. Mas é assim que se aprende ... e que se conhece a Serra.
Dois dias depois estava a pegar na bicicleta para, em Quadrazais, me embrenhar na Malcata. Da aldeia de Malcata subi ao Alízio, e, de novo para leste, à Torre de vigia da Machoca. Tinha o vale do Côa aos meus pés, Sabugal e Quadrazais à vista. Ao longo da cumeada que separa a Beira Alta da Beira Baixa, passo o Barroco Branco, o Cabeço da Moura, o Passil, o Coxino. Já tenho Vale de Espinho à vista, e desço pela Quinta do Passarinho, por onde 2 dias antes tinha subido. 37 km feitos...
Depois de uma digressão às Arribas do Douro (próximo post) ... regressámos a Vale de Espinho. E a segunda quinzena de Agosto foi de um contínuo desbravar: pelo caminho de Castelo Velho e pelos Nheres (Linhares), subi ao sítio mais mítico e mágico: as Fontes Lares! Tinha conhecido aquele lugar mágico havia 30 anos, quando da minha primeira visita à minha "terra natal". Na altura, a casita rústica, o abrigo que pertencera à família, ainda estava de pé. Agora testemunhava a passagem do tempo, o abandono naquele ermo esquecido ... mas um ermo onde a água divina daquele oásis escondido continuava a brotar da terra, da nascente singela, como as gentes singelas que em tempos ali viviam e ali amavam. Contam velhas lendas perdidas no tempo e nas fragas que a menina raiana, que um dia me passou a acompanhar ... foi ali "feita". Junto às ruínas da casa e à pequena presa que guarda a água divina, o barroco "sagrado" parece igualmente transmitir energia telúrica ... ou talvez a energia do tempo e
Destino: Quinta do Major, 17.08.2003
da história, das ligações familiares àquele "altar sagrado".
Das Fontes Lares subi ao Cabeço Melhano, ao Homem de Pedra; com o Soito aos pés e a Guarda no horizonte, desci à Malhada Alta, cruzei os Urejais, desci à Có Pequena, ao Areeiro ... e estava em Vale de Espinho. Três dias depois, a 17 de Agosto, voltei à Quinta do Major, que tinha conhecido 7 anos antes. Pedalava agora ao longo da raia, com Pesqueiro bem lá no fundo, deixando para trás o morro dos Enamorados e a Escaleriña. É claro que muitos dos topónimos me intrigavam. Mais tarde viria a descobrir a origem de muitos deles, pela leitura, entre outros, do histórico "Caçadas aos Javalis", do velho Dr. Francisco Maria Manso, sob o pseudónimo de
O Bazágueda junto à Quinta do Major, 17.08.2003
Dr. Framar; por ele conheci igualmente algumas das lendas e segredos da Marvana, que reservarei para um futuro post. À beira do Bazágueda, a 620m de altitude, a Quinta do Major pode bem considerar-se o coração da Malcata. Ali já foi uma rica e grande propriedade, com história perdida nos tempos. Seguiu-se a penosa subida ao Cabeço do Pão e Vinho (outro curioso topónimo...) e ao geodésico dos Concelhos (de novo acima dos 1000m), para daí descer vertiginosamente à Ribeira da Meimoa e às margens da respectiva barragem. Mais um pouco ... e estava a entrar no Meimão, guarda avançada do concelho de Penamacor, Beira Baixa, onde nasceu a mãe da minha arraiana.
Ruínas da Quinta do Major, 17.08.2003
Ribeiro da Casinha, Quinta do Major, 17.08.2003
Faltava ... subir à Malcata e regressar a Vale de Espinho. Com quase 30 km a pedalar por "sobes e desces", a ladeira Meimão / Malcata foi penosa. Ao chegar a Malcata ... recorri aos serviços do meu júnior, para me lá ir buscar em 4 rodas, a mim e às duas rodas que transportava. Ficou o sentimento de culpa de o ter obrigado a deixar a capeia de Vale de Espinho, a que estava a assistir...L!
Quinta do Major e Meimão, 17.08.2003
Navegação por GPS, Agosto de 2003
Mas 2 dias depois ... já estava em demanda da nascente do Côa! Estrada para os Foios, desta vez é à Serra das Mesas que subo, pela Rodeira e rodeando o Cabeço dos Currais. Um estradão (hoje alcatroado) leva-me ao Lameirão dos Foios, planalto acima já dos 1100m. A carta assinala mais ou menos a nascente. Deixo a bicicleta, vou a pé à procura ... e encontro a nascente do "meu" rio, do "meu" Côa, entre 3 pequenas fragas! Hoje todo o local está diferente, sinalizado e facilmente acessível, mas em 2003 a nascente do Côa só era conhecida dos "eleitos", daqueles que a haviam descoberto...
Em demanda da nascente do Côa, 19.08.2003
Fragas singelas, águas divinas: nascente do Côa, 19.08.2003
O penedo redondo, Lameirão, 19.08.2003
Cabeço da Pedra Monteira, 19.08.2003
Do Lameirão segui para a raia. Queria acompanhar a cumeada, passar a Pedra Monteira - onde dias antes chegara meio exausto... - queria procurar o verdadeiro caminho de Valverde. E encontrei-o ... bem como às espectaculares panorâmicas para a vertente estremenha, que já no regresso de Valverde tinha percebido.  Lá  em  baixo,  numa
Piçarrão (Pizarrón), vertente espanhola, 19.08.2003
encosta, estavam também as Ellas, ou Eljas, a aldeia branca, onde se fala "lagarteiru". Nestas aldeias perdidas nos confins da Extremadura espanhola, paredes meias com as nossas Beiras, não se habla ... fala-se! Valverde du Fresnu, as Ellas e Sa Martin de Trevellu (S. Martín de Trevejo) têm uma Fala própria, que "num é castelhanu ni português", é uma fala específica de cada uma das três localidades, respectivamente o Valverdeiru, Lagarteiru e Manhegu.
E nos dois dias seguintes ... mais duas caminhadas, embora mais curtas: dia 20, à Cruz Alta e ao Cabeço do Canto da Ribeira, sobre o Côa. E no dia 21 ... volto à nascente do Côa, agora com a família. E da nascente do Côa subimos ao alto mesmo da Serra das Mesas, do lado de lá da raia, a 1256 metros de altitude. Do alto do grande marco, parecíamos dominar o mundo ... pelo menos o "meu" mundo. Para leste, os Llanos de Navasfrías e a serra para além deles, as Torres das Ellas, ainda minhas desconhecidas. A sul, o grande vale de Valverde, com a Marvana ao fundo, já a sudoeste. A Estrela e a Gardunha percebem-se ao longe. E, para oeste, a linha das Mesas e da Malcata, à direita da qual se percebe o vale do Côa, nascido ali quase mesmo aos nossos pés. Vale de Espinho lá estava, onde o Côa já corre mais célere e mais  largo  do
Cume das Mesas, 1256m alt., 21.08.2003
que nesta sua serra mãe.

Serra! Serra Mãe, Serra Dor, Serra Pão,
Traço de união entre irmãos da mesma luta!
Do teu ventre brota a voz do passado
E um sussuro magoado
Ecoa pelos ares, a contar histórias

"Serra! Serra Mãe, Serra Dor, Serra Pão"
Amélia Rei
Neste verão de 2003, neste meu intenso desbravar da Natureza, onde cabem os lameiros, as margens do Côa, as águas turbulentas do meu rio? Couberam nos convívios em família, nos banhos corajosos, nos dias e horas de permeio entre o trilhar das velhas bredas. O velho Freixial dos anos 70 já não era o mesmo, mas a nossa "praia privativa" havia-se mudado para a açude acima do Moinho do Engenho.
Bebendo os ares das margens do Côa, 18.08.2003
Açude acima do Engenho ... a "nossa" praia, 20.08.2003
E assim, este intenso mês de Agosto de 2003 - o primeiro depois da perda de um grande filho de Vale de Espinho - reforçou os meus laços àquelas terras e àquelas gentes. Usando uma expressão típica dos verdadeiros Valespinhenses ... eu já tinha bebido e saboreado a água da Fonte Grande. Era, definitivamente, um filho adoptivo da terra. E, parafraseando os contos que inspiraram o título deste blog, pelas "bredas feitas à sorte" eu havia descoberto a fonte do meu Côa, a fonte de onde brotam as "claras águas", que saltam fragas, alimentam lameiros, dão cor e vida à paisagem, "nas terras de onde se contam velhas lendas, quase negras" ... nas minhas terras raianas.

   "Fraga", (dos "Contos de Fragas e Pragas", Sebastião Antunes, Quadrilha, 1992)
 
3 de Junho de 2011