No verão de 2003, a necessária catarse levou-nos a umas férias sediadas em
Vale de Espinho. Acampámos a autocaravana à porta da tia que habitualmente nos dava guarida ... e de lá parti, a pé e de bicicleta, ao desbravar da Serra da
Malcata, das
Mesas, do
Homem de Pedra. A comunhão com a serra dava-me paz, conversava com as águas, com o vento, com as perdizes fugidias ... com a memória de quem tinha trilhado aquelas
bredas. Entre uma estadia no final de Julho e outra em Agosto - intervaladas por uma digressão a terras de Miranda - percorri cerca de 170 km, a pé e de bicicleta, pelas "minhas" terras raianas. E a melhor forma de catarse ... é sozinho. Sempre tive bom sentido de orientação, mas tinham entretanto chegado os tempos da navegação por
GPS. Há pouco mais de um ano tinha comprado um aparelho Magellan, que já me havia acompanhado à Irlanda e nas primeiras caminhadas com os Caminheiros Gaspar Correia. Na internet, tinha também descoberto o
OziExplorer, o software que ainda hoje considero ideal para o pedestrianismo. E tinha conseguido velhas cartas militares das "minhas" terras raianas. Uma fase
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Cabeço do Clérigo, a caminho de Valverde, 23.07.2003 |
interessantíssima do estudo dessas cartas foi a confrontação entre a toponímia nelas constante e a tradição oral para os nomes de tantos e tantos lugares que eu iria conhecer e desbravar.
Valverde del Fresno é a povoação espanhola mais próxima de Vale de Espinho ... e há muito que me chamava. Cruzar a raia, pelas velhas "
bredas" do contrabando, ou dos tantos e tantos Valespinhenses que tinham olivais em
Pesqueiro - o vale fértil para lá da raia - que conheciam os trilhos da serra como as suas mãos, era um apelo há muito sentido. Eu não conhecia ainda a maioria dos trilhos da serra ... mas no dia 23 de Julho parti bem cedo, a pé, para uma jornada que ultrapassaria os 34 km ... rumo a Valverde! O percurso foi o que, na carta, me pareceu mais directo, pela
Quinta do Passarinho e
Cabeço do Clérigo, onde me esperava a grande descida para o vale de
Sobrero ... seguido da subida ao
Muro Julian e
Rascaderos, antes de descer para Valverde.
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Regresso Valverde - Foios: a parede do Picoto, 23.07.2003 |
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Um providencial tanque que virou piscina privativa,
antes de atacar o Picoto...J! |
Os primeiros quase 6 km do regresso foram ao longo da estrada Valverde - Navasfrias, com panorâmicas cada vez mais espectaculares sobre Valverde e a planície estremenha, os vales de
Corral Hidalgo e
Sobrero e os extensos olivais de Pesqueiro,
Vale de Espinho - Valverde e regresso: 34 km, 23.07.2003 |
com a Marvana ao fundo. Mas depois, já por um estradão florestal a meia encosta ... tinha a impressionante parede do
Picoto e
Toriña à minha frente. Um providencial tanque de água límpida e fresca permitiu um bom e retemperador banho ... e depois "ataquei" o Picoto, em direcção ao geodésico da
Pedra Monteira, na fronteira. Em pouco mais de 1,5 km ... subi 370m de desnível, dos 720m aos 1090m da Pedra Monteira ... onde descansei uns bons 15 a 20 minutos. Esta não tinha sido definitivamente a melhor opção de percurso ... particularmente no regresso...
J! Mais tarde viria a ter conhecimento - e a conhecer
in loco... - o percurso mais aconselhável de e para Valverde, pelo
Piçarrão ... e para o qual me teria bastado continuar o estradão da vertente espanhola. Mas é assim que se aprende ... e que se conhece a Serra.
Dois dias depois estava a pegar na bicicleta para, em
Quadrazais, me embrenhar na
Malcata. Da aldeia de Malcata subi ao
Alízio, e, de novo para leste, à Torre de vigia da
Machoca. Tinha o vale do
Côa aos meus pés, Sabugal e Quadrazais à vista. Ao longo da cumeada que separa a Beira Alta da Beira Baixa, passo o
Barroco Branco, o
Cabeço da Moura, o
Passil, o
Coxino. Já tenho Vale de Espinho à vista, e desço pela
Quinta do Passarinho, por onde 2 dias antes tinha subido. 37 km feitos...
Depois de uma digressão às Arribas do Douro (próximo
post) ... regressámos a
Vale de Espinho. E a segunda quinzena de Agosto foi de um contínuo desbravar: pelo caminho de
Castelo Velho e pelos
Nheres (Linhares), subi ao sítio mais mítico e mágico: as
Fontes Lares! Tinha conhecido aquele lugar mágico havia 30 anos, quando da minha
primeira visita à minha "terra natal". Na altura, a casita rústica, o abrigo que pertencera à família, ainda estava de pé. Agora testemunhava a passagem do tempo, o abandono naquele ermo esquecido ... mas um ermo onde a água divina daquele oásis escondido continuava a brotar da terra, da nascente singela, como as gentes singelas que em tempos ali viviam e ali amavam. Contam velhas lendas perdidas no tempo e nas fragas que a menina raiana, que um dia me passou a acompanhar ... foi ali "feita". Junto às ruínas da casa e à pequena presa que guarda a água divina, o barroco "sagrado" parece igualmente transmitir energia telúrica ... ou talvez a energia do tempo e
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Destino: Quinta do Major, 17.08.2003 |
da história, das ligações familiares àquele "
altar sagrado".
Das Fontes Lares subi ao
Cabeço Melhano, ao
Homem de Pedra; com o Soito aos pés e a Guarda no horizonte, desci à
Malhada Alta, cruzei os
Urejais, desci à
Có Pequena, ao
Areeiro ... e estava em Vale de Espinho. Três dias depois, a 17 de Agosto, voltei à
Quinta do Major, que tinha conhecido
7 anos antes. Pedalava agora ao longo da raia, com Pesqueiro bem lá no fundo, deixando para trás o morro dos
Enamorados e a
Escaleriña. É claro que muitos dos topónimos me intrigavam. Mais tarde viria a descobrir a origem de muitos deles, pela leitura, entre outros, do histórico "Caçadas aos Javalis", do velho Dr. Francisco Maria Manso, sob o pseudónimo de
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O Bazágueda junto à Quinta do Major, 17.08.2003 |
Dr. Framar; por ele conheci igualmente algumas das lendas e segredos da
Marvana, que reservarei para um futuro
post. À beira do
Bazágueda, a 620m de altitude, a Quinta do Major pode bem considerar-se o coração da Malcata. Ali já foi uma rica e grande propriedade, com história perdida nos tempos. Seguiu-se a penosa subida ao
Cabeço do Pão e Vinho (outro curioso topónimo...) e ao geodésico dos
Concelhos (de novo acima dos 1000m), para daí descer vertiginosamente à
Ribeira da Meimoa e às margens da respectiva barragem. Mais um pouco ... e estava a entrar no
Meimão, guarda avançada do concelho de Penamacor, Beira Baixa, onde nasceu a mãe da minha arraiana.
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Ruínas da Quinta do Major, 17.08.2003 |
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Ribeiro da Casinha, Quinta do Major, 17.08.2003 |
Faltava ... subir à Malcata e regressar a Vale de Espinho. Com quase 30 km a pedalar por "sobes e desces", a ladeira Meimão / Malcata foi penosa. Ao chegar a Malcata ... recorri aos serviços do meu júnior, para me lá ir buscar em 4 rodas, a mim e às duas rodas que transportava. Ficou o sentimento de culpa de o ter obrigado a deixar a capeia de Vale de Espinho, a que estava a assistir...
L!
Quinta do Major e Meimão, 17.08.2003 |
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Navegação por GPS, Agosto de 2003 |
Mas 2 dias depois ... já estava em demanda da
nascente do Côa! Estrada para os
Foios, desta vez é à
Serra das Mesas que subo, pela
Rodeira e rodeando o
Cabeço dos Currais. Um estradão (hoje alcatroado) leva-me ao
Lameirão dos Foios, planalto acima já dos 1100m. A carta assinala mais ou menos a nascente. Deixo a bicicleta, vou a pé à procura ... e encontro a nascente do "meu" rio, do "meu" Côa, entre 3 pequenas fragas! Hoje todo o local está diferente, sinalizado e facilmente acessível, mas em 2003 a nascente do Côa só era conhecida dos "eleitos", daqueles que a haviam descoberto...
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Em demanda da nascente do Côa, 19.08.2003 |
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Fragas singelas, águas divinas: nascente do Côa, 19.08.2003 |
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O penedo redondo, Lameirão, 19.08.2003 |
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Cabeço da Pedra Monteira, 19.08.2003 |
Do Lameirão segui para a raia. Queria acompanhar a cumeada, passar a
Pedra Monteira - onde dias antes chegara meio exausto... - queria procurar o verdadeiro caminho de Valverde. E encontrei-o ... bem como às espectaculares panorâmicas para a vertente estremenha, que já no regresso de Valverde tinha percebido. Lá em baixo, numa
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Piçarrão (Pizarrón), vertente espanhola, 19.08.2003 |
encosta, estavam também as
Ellas, ou Eljas, a aldeia branca, onde se fala "
lagarteiru". Nestas aldeias perdidas nos confins da Extremadura espanhola, paredes meias com as nossas Beiras, não se
habla ... fala-se!
Valverde du Fresnu, as
Ellas e
Sa Martin de Trevellu (S. Martín de Trevejo) têm uma
Fala própria, que "
num é castelhanu ni português", é uma
fala específica de cada uma das três localidades, respectivamente o
Valverdeiru,
Lagarteiru e
Manhegu.
E nos dois dias seguintes ... mais duas caminhadas, embora mais curtas: dia 20, à
Cruz Alta e ao Cabeço do
Canto da Ribeira, sobre o Côa. E no dia 21 ... volto à nascente do Côa, agora com a família. E da nascente do Côa subimos ao alto mesmo da
Serra das Mesas, do lado de lá da raia, a 1256 metros de altitude. Do alto do grande marco, parecíamos dominar o mundo ... pelo menos o "meu" mundo. Para leste, os
Llanos de Navasfrías e a serra para além deles, as Torres das Ellas, ainda minhas desconhecidas. A sul, o grande vale de Valverde, com a Marvana ao fundo, já a sudoeste. A Estrela e a Gardunha percebem-se ao longe. E, para oeste, a linha das Mesas e da Malcata, à direita da qual se percebe o vale do Côa, nascido ali quase mesmo aos nossos pés. Vale de Espinho lá estava, onde o Côa já corre mais célere e mais largo do
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Cume das Mesas, 1256m alt., 21.08.2003 |
que nesta sua serra mãe.
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