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domingo, 26 de setembro de 1971

Uma viagem transafricana ... há 40 anos!

Entre 1961 e 1970, já tinha percorrido toda a Europa de automóvel, como referido no artigo de apresentação deste blog, bem como dois "aperitivos" africanos em Marrocos. Ora, a meio dos "anos loucos" de 1970 a 72 ... participei na maior "aventura" de sempre com meus pais e irmão: uma viagem transafricana, num VW "carocha", estabelecendo a ligação automóvel Luanda - Cidade do Cabo - Lourenço Marques - Beira! Quase 11 mil km percorridos!
Luanda, 15 de Agosto de 1971
Para um apaixonado pela Natureza que já era ... esta foi sem dúvida a viagem mais épica de sempre, até porque implicava a passagem por diversas áreas naturais que passavam frequentemente pelo meu imaginário. Comemorei aliás o meu 18º aniversário ... no Canyon de Fish River, em pleno deserto do Namib!
Assim, a 15 de Agosto de 1971 - poucos dias depois de regressado do acampamen-to na Berlenga... -  tive o meu baptismo de voo, um voo de cerca de 9 horas, até à então portuguesa Luanda! A Luanda dos anos 70 é talvez, ainda hoje, das mais belas cidades que conheci!
Quedas Duque de Bragança,
17 de Agosto de 1971
A primeira maravilha da Natureza foram as Quedas Duque de Bragança, no rio Lucala, próximo de Malange. O espectáculo das águas e da floresta tropical é inesquecível. Os sons e os cheiros também nos diziam bem que estávamos em África. Do mato vinham gritos de aves escondidas, o guinchar de macacos saltando nos ramos de um embondeiro, o restolhar de qualquer cobra ou lagarto nas ervas.
A Tundavala, próximo de Lubango,
23 de Agosto de 1971
Novo Redondo (actual Sumbe), Benguela e Lobito foram as primeiras etapas da viagem para sul, através de vastas plantações de algodão. Ao longo do planalto do Bié e depois da Huíla, seguiram-se Nova Lisboa (Huambo) e Sá da Bandeira (Lubango). A Tundavala, a 2250m de altitude, marca abruptamente o fim do planalto.
O Dedo de Deus de Mukorob, Namíbia,
26 de Agosto de 1971
A sul de Sá da Bandeira, a planície desértica começa a dominar, antevendo o deserto do Namib. A actual Namíbia chamava-se então Sudoeste Africano, administrado pela África do Sul. Atravessado o Cunene e a fronteira sul de Angola, cruzámos também a zona dos lagos secos de Etosha (actualmente Parque Nacional Etosha Pan), até à primeira cidade importante, Tsumeb. E se a vegetação se tornara escassa, típica das savanas, a vida animal pelo contrário pululava: começávamos a ver elefantes, avestruzes, kudus, miríades de aves multicolores...! E nesse dia 24 de Agosto, pouco antes de chegar a Tsumeb, assistimos ao espectáculo grandioso do pôr-do-Sol sobre a savana.
De Windhoek, capital da Namíbia, continuámos para sul, sempre para sul ... e cruzámos o Trópico de Capricórnio. A savana dá lugar ao deserto, o imenso e desolado Kalahari, que próximo de Asab nos ofereceu uma das formações mais espectaculares da Natureza: o "Dedo de Deus" de Mukorob, imponente "dedo" arenítico apontado aos céus, rodeado de dunas de uma areia finíssima e encarniçada ... e já desaparecido: o "dedo de Deus" colapsou 17 anos depois, em Dezembro de 1988.
No dia seguinte ... tive a melhor prenda dos meus 18 anos (não, na altura não era ainda a maioridade...): o espectáculo grandioso do Fish River Canyon, espectacular vale cortado nas montanhas desérticas que separam o Kalahari do Namib. Ali, a terra abre-se à nossa frente, cai a pique mais de 800 metros, contorce-se, dobra-se em curvas pronunciadas e, no fundo do vale, corre um fio de água: o Fish River.
Fish River Canyon, Sudoeste Africano (actual Namíbia), 27 de Agosto de 1971
O que ali existe não é beleza de formas nem harmonia de cores; é uma beleza e uma grandiosidade selvagens, que nos tornam minúsculos seres, perdidos na imponência e grandiosidade natural. E aliás, já depois do Fish River Canyon, para sul, a pista proporcionou-nos também uma extraordinária visão do que é o Namib: uma imensa região montanhosa e árida, com extensos areais de uma brancura imaculada. Parecia estarmos na Lua, no fim do mundo, ou em qualquer lugar saído de um conto irreal.
Quando começámos a avistar o vale do rio Orange, pareceu-nos entrar num oásis. Tínhamos atravessado a actual Namíbia de norte a sul, percorrendo quase 1500 km de savana e deserto.
A África do Sul, entre o rio Orange e a Cidade do Cabo, contrasta radicalmente com a região que tínhamos acabado de atravessar: montanhas cobertas de verde, campos de flores multicolores, rios de águas cristalinas, onde se espelham as soberbas panorâmicas. Um autêntico paraíso!
Cabo das Boa Esperança,
29 de Agosto de 1971

A 29 de Agosto estávamos entre dois oceanos: o Cabo da Boa Esperança - o velho Cabo das Tormentas - transportou-nos da costa atlântica para o Índico. Senti ecoar nos ares as vozes de Bartolomeu Dias e de Vasco da Gama. Tínhamos vencido, também nós, o velho mito do Adamastor...
Na Cidade do Cabo, e como único elemento da "tripulação" com forte despertar pelas Ciências da Vida, recordo o espanto e admiração que me causou o South African Museum, sem dúvida o maior e mais rico Museu de História Natural que conheci na vida. Claro que recordo também o espectacular panorama do cimo da Table Mountain, bem como o espectáculo nocturno das luzes de Cape Town, visto do cimo da Signal Hill.

O Cabo marcaria a inflecção para nordeste, rumo a Moçambique. Em pleno Agosto, causaram-nos estranheza e sensação as montanhas cobertas de neve que acompanharam parte do percurso entre o Cabo e Port Elizabeth. Estávamos mesmo no hemisfério sul!
No dia 3 de Setembro entrávamos em Joanesburgo - a Golden City - e no dia 5 em Pretória. Com muita pena minha, entre esta e a fronteira moçambicana ... não fomos ao famoso Krüger Park. Atravessando os vastos laranjais do Umbeluzi ... chegámos a Lourenço Marques, a actual Maputo. Com pouco mais de 9 mil km percorridos, estava estabelecida a ligação entre as duas capitais africanas, Luanda e Lourenço Marques.
Beira, 11 de Setembro de 1971

Entre Lourenço Marques e a Beira ... a dúvida persistia na possibilidade de ligação automóvel: em 1971, a principal estrada moçambicana era ainda pouco mais que uma picada, principalmente a norte do rio Save. Mas, antes da "aventura", João Belo (Xai-Xai), Inhambane e Vilanculos mostraram-nos autênticos paraísos nas margens do Índico. Em Xai-Xai vimos pela primeira vez hipopótamos, no Limpopo. Para Inhambane, numa península frente a Maxixe, fomos ... de veleiro. E Vilanculos e as suas praias foram um pequeno "rebuçado" ... frente às paradisíacas ilhas do Paraíso, ou de Bazaruto. Destas praias de areias finas e águas azuis e tépidas, trouxe uma das maiores conchas marinhas da minha modesta colecção, uma Tridacna imaculada que ainda hoje guardo religiosamente.
No dia 11 de Setembro - 30 anos antes da tragédia das Twin Towers - assistimos ao espectáculo para nós insólito de ver o Sol nascer no mar: um esplendoroso nascer do Sol sobre a ilha de Santa Isabel e as águas imaculadas do Índico. 130 km depois chegámos ao Save ... e adeus alcatrão! A ponte encontrava-se ainda em início de construção e a passagem foi feita por um aterro; e, do outro lado ... picada! Durante cerca de 80 km ... por vezes nem se percebia bem onde estava a "estrada"; 5 ou 6 gazelas cruzaram-se à nossa frente. Aqueles 80 km levaram ... quase 3 horas! E já na quase noite das 6 da tarde daquele dia 11 de Setembro ... chegámos à Beira! A viagem transafricana estava completa!
Gorongosa, 15 de Setembro de 1971

Gorongosa, 15 de Setembro de 1971
Permanecemos quase duas semanas na Beira, período durante o qual se proporcionaram duas visitas importantes. Uma delas era "obrigatória": o Parque Nacional da Gorongosa! "A Fauna", do saudoso Félix Rodriguez de la Fuente, havía-me transmitido o imaginário dos grandes Parques Nacionais da África Oriental: "conhecia" o Serengeti, a cratera de Ngorongoro, as cataratas de Murchison, o Parque Masai-Mara, o Krüger Park ... mas agora estava, ao vivo e a cores, na não menos espectacular Gorongosa! O que ali vimos ficou-me para sempre gravado na memória; o que ali sentimos é difícil de descrever...! São as extensas savanas onde pastam enormes manadas de zebras e gnus. São as famílias de leões dormindo pachorrentamente à sombra das acácias. São as aves exóticas que esvoaçam, saltitam, planam, debicam e chilreiam à nossa volta. É o festim dos abutres que devoram o que ficou de uma zebra que um casal de leões abandonou. Relicário vivo da criação, a Gorongosa é uma das recordações mais latentes de uma aventura prodigiosa.
A bordo do Nord-Atlas, a caminho
de Tete, 20 de Setembro de 1971

A outra visita durante a estadia na Beira foi a Tete e Cabora Bassa. De Nord-Atlas desde Tete, fomos ver as obras daquela emblemática barragem ... e regressando à Beira de automóvel. Em 1971, apenas em Tete e no regresso à Beira, entre Tete e Vila Pery (actual Chimoio), era patente o movimento militar que nos alertava para a então guerra colonial. Infelizmente, poucos anos depois tanto Angola como Moçambique passariam por guerras civis, que inviabilizariam a viagem transafricana que então fizemos.

E a travessia da África austral ficou, nas minhas memórias, como a maior "aventura" de sempre das viagens com meus pais e irmão. Regressados a Lisboa no final de Setembro ... poucos dias depois eu estava com mais dois a subir a Arrábida a pé...J!
10 de Janeiro de 2011

5 comentários:

bissaide disse...

O que eu gostava de ter feito esta viagem!...

Margarete disse...

Este foi o episódio que mais me tocou. Andaste por terras que me são familiares ( até Cape Town) e das quais tenho as melhores recordações...
Grandes pais que tal aventura vos proporcionaram...
Adorei.
Margarete

Unknown disse...

Hoje senti aqui, as impressões e as emoções fortes, que as belezas agrestes do continente africano causaram a um jovem, que começava há 40 anos, a descobrir uma paixão pela Natureza, que ainda hoje se mantém e que explode, passadas 4 décadas, em cada parágrafo desta crónica! Obrigado pela partilha da experiência. Gostei imenso.
Mousinho

Unknown disse...

Só hoje arranjei tempo para ler. Fantástico!

JORGE FIGUEIREDO SANTOS disse...

Mais uma vez, uma impressão estereoscópica, agora de uma viagem transafricana em 1971, a oportunidade de "importar" dois registos de duas pessoas na mesma viagem.
Ainda há um par de meses, provara o mesmo ao ler «Uma Ideia da Índia» do Alberto Moravia, da viagem que fez em 1961 com a mulher e o amigo Pier Paolo Pasolini, que também escreveu um livro daquela mesma viagem «Cheiro da Índia», a soma das duas leituras melhorou a minha imagem final, qual 3D.
Aqui, quer na leitura do livro do teu pai, quer no teu blog, encalhei no mesmo sítio, Vilanculos e o arquipélago de Bazaruto e por "lá tenho ficado estes dias" regressei agora pelo Google Maps versão Earth - o tempo está bom!