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terça-feira, 6 de agosto de 1985

Regresso do Bojador ... uma aventura no deserto

Cabo Bojador, 23 de Julho de 1985. Com a "garantia" do nosso simpático Caïd de que os problemas mecânicos seriam certamente solucionados, partimos de Boujdour antes da uma da tarde. O próximo objectivo era Smara, a cidade santa do Sahara ocidental, 230 km a nordeste, para o interior.
Mas ... à medida que nos afastávamos da costa, a  temperatura  ia subindo rapidamente;  íamos  começar  a
A caminho de Smara, tarde de 23 de Julho de 1985
pagar a frescura do litoral. A paisagem transformou-se numa imensa e inóspita planície, recortada apenas de quando em quando por pequenas hammadas, as mesetas pedregosas características destas remotas paragens.
Pelas sete horas da tarde, o termómetro de bordo ... atingiu os 50º. O céu não estava muito limpo, mas era uma neblina estranha, de uma cor amarelo-rosa ... a mesma cor da areia que nos rodeava...! No mesmo sentido que nós, uma Toyota ultrapassou-nos quando estávamos parados numa das cada vez mais frequentes operações para tentar que o dínamo funcionasse. Perguntaram-nos se precisávamos de alguma coisa ... dissemos que não. Pouco depois, a somar à luz da bateria ... a luz do óleo começou também a piscar! Nova paragem e ... céus, o motor estava a perder óleo! Juntas da cabeça desapertadas ou queimadas, foram as hipóteses menos graves que o "mecânico" de bordo considerou. Não poderíamos sair de Smara sem arranjar o que se passava ... isto se chegássemos a Smara. Mas entretanto deixámos para trás a Toyota, parados que estavam os seus ocupantes a enviar as suas preces a Alá ... em bonitos tapetes estendidos na areia. Mais tarde agradeceríamos nós a Alá o facto daqueles seus servos terem ficado para trás de nós...
Começa a formar-se uma tempestade de areia...
Eram já quase oito horas e sentimos o dia a declinar mais rapidamente que o normal. As nuvens ... não eram afinal nuvens, mas sim areia que rodopiava no ar, impulsionada pelo temível vento irifi.  Estávamos a entrar ... numa tempestade de areia! Tudo em redor se tornou de um tom acobreado. A paragem foi obrigatória. Com todos os vidros fechados e as portas trancadas, a areia finíssima via-se acumular dentro da carrinha! E quando já começava a passar-nos pela ideia a impossibilidade de prosseguir, o fenómeno terminou tão depressa como tinha começado. Viam-se nuvens de areia a avançar pelo deserto para sudoeste ... e de repente vimo-nos numa "clareira" a perder de vista ... com o céu azul e um Sol implacável!
O estado do motor era deplorável, coberto por uma mistura de areia e óleo queimado. Mas a nossa casa ambulante continuava a andar...! Quase nove horas. Faltavam 80 km para Smara e a noite caía rapidamente. Não podíamos acender os faróis, para não gastar bateria. Parámos mais uma vez para acrescentar óleo ... e nova tempestade de areia nos envolveu, agora no escuro da noite. Formas fantasmagóricas pareciam surgir do nada! Só quando chegavam a escassos metros podíamos distinguir nelas enormes colunas de areia que se deslocavam deserto fora. Só tínhamos uma solução: esperar de novo pela complacência da Natureza ... e pela Toyota que em boa hora havia ficado para trás!
Quando a tempestade voltou a amainar, verificámos com prazer que havia luar ... mas a temperatura era de 40º! Não se verificam ali as grandes amplitudes térmicas características de outras zonas do Sahara, mais a sudeste. Deveriam ser dez da noite quando uma luz branca apareceu por trás de nós, em movimento. Eram finalmente os nossos salvadores! E assim fizemos 80 km atrás deles, com os faróis apagados, a luz do dínamo sempre acesa ... e a do óleo quase sempre. E pouco depois das onze horas ... entrávamos em Smara, a cidade santa do Sahara ocidental.
O guardião da zaouïa de Ma el
Ainïn, Smara, 24.07.1985
Foi em Smara que vimos maior movimento de tropas. Estávamos a uma escassa centena de quilómetros da fronteira da Mauritânia e a 400 km de Tindouf, na Argélia. E em Smara sabíamos ir ficar num Hotel com um nome sonante: Hotel "Sables d'Or". Com este nome, o calor e a areia que tínhamos em cima, a primeira pergunta foi se podíamos ir tomar um duche. Resposta do gerente: "mais oui, certainement, pas de problème" ... e aparece-nos a seguir com um balde cheio de água e uma garrafa cortada ao meio ... para encher e despejar por cima do corpo...! Numa das casas de banho do hotel, interior ... seguramente dava para cozer ovos. A temperatura na rua, à meia noite, permanecia acima dos 35º...
Na manhã seguinte, a VW foi confiada às mãos de um mecânico que, supostamente, mandaria vir de Agadir as peças necessárias. Vamos passar 3 ou 4 dias em Smara, pensámos nós. E, durante a manhã, visitámos a zaouïa de Ma el Ainïn, o cheikh que, na primeira década do séc.XX, a partir dali pregou a guerra santa contra o invasor francês.
Regressados à oficina, o mecânico garantiu-nos que a carrinha estava pronta para andar, depois de uns apertos nas juntas do motor e uma regulação do dínamo. Pouco crédulos ... depois do almoço lá partimos em direcção ao norte. A temperatura era de 49º à sombra; ao Sol ... bem, ao Sol estava a 64º!
No regresso, tínhamos obrigatoriamente de voltar a passar em TanTan e Guelmim. Entre Smara e TanTan tínhamos 225 km de deserto ... e que deserto. De ambos os lados da "fita" alcatroada, uma imensa e inóspita planície estendia-se a perder de vista. E, para a frente, parecia-nos ver, lá muito ao fundo ... um lençol de água e até palmeiras! Avançámos 20, 50, 100 km ... mas a paisagem inóspita continuava sempre igual. Estávamos ... com miragens! Camadas de ar a diferentes temperaturas são as responsáveis por este fenómeno, até porque, à medida que avançávamos para norte e para o litoral, a temperatura descia rapidamente: quase 40º em pouco mais de 100 km!
Estrada Smara - TanTan, 24.07.1985: ao fundo,
lá muito ao fundo ... estávamos a ver miragens!
Mas ainda a uns bons 100 km de TanTan ... eis que surge de novo o alarme: há fumo dentro da carrinha! Uma rápida inspecção ... e  encontramos  o  motor  banhado  em  óleo!  Paragem,  deixar arrefecer,  limpar,
Mala suerte ... de novo empanados!
E 130 km rebocados, entre TanTan e Guelmim
acrescentar óleo comprado em Smara para o que desse e viesse ... e era preciso chegar a TanTan ... tanto mais que desta vez não tínhamos visto um único veículo! As previsões mais modestas apontavam já para quebra de segmentos ou de pistons ... mas a nossa "velha companheira" nunca parou. E foi portanto apenas por segurança que fomos rebocados de TanTan a Guelmim ... onde iríamos passar os 3 dias seguintes!
E assim voltámos ao Hotel Salam, o primeiro onde tínhamos ficado na "corrida" para o sul. O simpático recepcionista ficou satisfeito de nos voltar a ver ... pregando dois repenicados beijos aos dois elementos masculinos da nossa tripulação...J!
O motor foi assim desmontado pela segunda vez. A superfície de um piston tinha literalmente derretido, os segmentos correspondentes estavam partidos, alguns pedaços soltos tinham entrado no cárter ... e o automático do dínamo estava queimado! Nada mau...J! Mas estávamos cheios de sorte...: um mecânico amigo do "nosso" mecânico ... tinha uma VW idêntica à nossa ... da qual foram retiradas as peças necessárias! No sangue português corre de certeza sangue árabe ... e os genes do desenrascanço...J!
Marrocos é verdadeiramente um país de contrastes
Paisagens típicas do Alto Atlas, 30.07.1985
Durante os 3 dias de espera, visitámos as termas de Abeïno, a típica povoação de Asrir e as nascentes de Teghmert, maravilhoso oásis com campos de milho, palmeirais e olivais. E no dia 29 de Julho, com a carrinha finalmente arranjada, partimos em direcção ao Alto Atlas. Com a carrinha arranjada ... julgávamos nós...L!
Por Tiznit e Taroudannt chegámos às montanhas. O Atlas é um outro Marrocos, é o reino da frescura, da água e das grandes extensões arborizadas, salpicadas aqui e ali por pequenos e típicos povoados de cor vermelho-ocre. De repente ... parecia que tínhamos sido transportados para os altos planaltos do Tibete! No Tizi-n-Test, quase a 2100 metros de altitude, não estávamos longe do Jbel Toubkal, ponto culminante de Marrocos e de toda a África do norte, com os seus 4167 metros.
Encantadores de serpentes na Praça Jemaa el Fna,
Marrakesh, 2 de Agosto de 1985
E do Alto Atlas descemos para a mais marroquina das cidades de Marrocos: Marrakesh. Só que, nessa "etapa" ... começámos a ouvir de novo ruídos estranhos no motor! Instalados já no Camping de Marrakesh ... às 6 da tarde decidimos que só na própria VW saberiam ver o que se passava. A oficina VW mais próxima ... era em Casablanca ... a 250km! E lá fomos nós para Casablanca, onde chegámos já noite ... e onde passámos 2 dias! Depois, então sim, tínhamos finalmente a nossa "casa" arranjada! Marrakesh, a "pérola do sul", ficara para trás...L! Não podia ser! Remando contra a maré da má sorte ... no segundo dia de Agosto estávamos de novo em Marrakesh!  E  em boa hora o fizemos.  A  visita  à
Cascatas de Ouzoud, Médio Atlas, 3.08.1985
"praça mágica", a mítica e mística Praça Jemaa el Fna ... vale a viagem!
E de Marrakesh a Lisboa foi uma "corrida" contra o tempo. Mas, para além das cidades de Fez e Meknes (e da presença romana em Volubilis), os últimos dois dias em África permitiram ainda atravessar mais duas regiões de espectacular beleza: as montanhas do Médio Atlas e, já na costa mediterrânica, a região do Rif. Na primeira, dois espectaculares monumentos naturais deixaram-nos maravilhados: o arco rochoso natural de Imi-n-Ifri (a "porta do abismo") e as espectaculares Cascatas de Ouzoud. Vindos da imensidão desértica do Sahara ... nas cascatas de Ouzoud pareceu-nos estar no seio de uma densíssima floresta equatorial...
Chegada a Lisboa, 6 de Agosto de 1985

Esta viagem tinha-nos realmente permitido obter imagens impressionantes, de um mundo pleno de
Apresentação do livro
"Expedição Gil Eanes", 19.05.1986
contrastes!
E tinha-nos deixado vivências e recordações inesquecíveis
... dignas de registar em
livro.

A 19 de Maio
do ano seguinte,  1986,  na presença do Embaixador de Marrocos  em
Lisboa, apresentei o livro "Expedição Gil Eanes", de minha edição. E tive o grato prazer de ter, entre os meus convidados ... o meu velho professor, Dr. Hernâni de Seabra Ribau! Quis o destino ... que tivesse sido a última vez que o vi.
11 de Fevereiro de 2011

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