Pelos caminhos da Espeleologia, dos
acampamentos, das muitas fragas e trilhos percorridos, os
nossos
campos e as nossas aldeias tinham-me ensinado a respirar o ar puro, a
conviver, a criar uma paixão pela Natureza e pelo mundo rural. Em Abril de
1973, o romance havia pouco iniciado levou-me a uma aldeia raiana que, 20 anos
antes, vira nascer aquela que viria a ser minha mulher; aldeia, terras e
gentes que adoptei e que me adoptaram, que tenho calcorreado e desbravado ao
longo de quase 40 anos! Vale de Espinho, nas terras de
RibaCôa do concelho do Sabugal, separada da Beira Baixa pelas alturas da Serra
da Malcata ... passou a ser a "minha" aldeia, o retiro
espiritual de tantos e tantos encontros com a Natureza ... desde esses
primeiros 5 dias maravilhosos ... nas férias da Páscoa de um longínquo
1973.
Trinta e três anos depois, em 2006 escrevi para um filme a que precisamente chamei ... "Vale de Espinho, uma melodia a 4 estações":
Mas voltemos a recuar no tempo. Aqueles 5 dias de Abril de 1973 foram inesquecíveis. Conheci os avós da minha "tão linda
arraiana"; conheci as ruas e as estreitas "quelhes" da aldeia, de casas
de pedra, as lojas para os animais por baixo da habitação, conheci os lameiros
onde labutavam homens e animais, conheci a vida rude, sã e pura do campo.
Logo no segundo dia, fomos às Fontes Lares a pé, a cerca de 4
km da aldeia. É um sítio com recordações gravadas nas memórias da família onde
estava a entrar, com a sua nascente de água pura e cristalina, o barroco do
qual parece brotar energia telúrica, a que mais tarde eu viria a chamar o
"barroco sagrado".
E, claro, o Côa, ali ainda relativamente perto da nascente, antes de atravessar toda a Beira Alta e se precipitar no Douro. Que saudades do velho Freixial, das Aleguinhas, das trutas que víamos correr nas águas cristalinas e gélidas.
A minha arraiana e os pais ficaram em casa da avó materna; eu, claro ... fiquei em casa dos avós paternos. E mesmo assim, em 1973, já era uma grande ousadia alguém de fora querer "roubar" uma moça da aldeia. Sempre que um rapaz de fora iniciava namoro com alguma, era autuado pelos da terra, isto é, intimado a pagar a "patenta". Esta constava geralmente de um cântaro de vinho, acompanhado por tremoços e amendoins e, por vezes, por uma bucha – pão com chouriço ou com outro petisco. As raparigas envolvidas nesses namoros sentiam-se, por um lado, envaidecidas por serem procuradas, mas ao mesmo tempo criticadas face à aceitação de um rapaz de fora. A recusa do pagamento da patenta podia ser interpretada como querer fazer pouco, não só da rapariga como da rapaziada local. O forasteiro ou assumia e pagava, ou desandava dali. Contudo ... nunca paguei a patenta...J! Talvez porque a rapaziada de Vale de Espinho já sabia que eu viria a ser filho adoptivo da raia...J!
Aqueles 5 dias foram inesquecíveis ... mas muitos outros se seguiram naquelas
terras de encanto e encantamento ... ao longo já de quase 4 décadas!
Tal como o filme de 2006, este artigo é dedicado à memória do meu saudoso sogro, José Clemente Malhadas, o "Zé Malhadinhas", filho de Vale de Espinho e das terras raianas.
Vale de Espinho, Rio Côa 19 de Abril de 1973 |
Trinta e três anos depois, em 2006 escrevi para um filme a que precisamente chamei ... "Vale de Espinho, uma melodia a 4 estações":
"Em Abril de 1973, conheci pela primeira vez Vale de Espinho. Desde
então, apaixonei-me verdadeiramente pelas terras e gentes raianas, por
esta aldeia que viu nascer gente que passou a fazer parte da minha
vida.
Sem nele ter tido aparentemente origem, o mundo rural sempre me fascinou. Aqui, na "minha" Vale de Espinho, sinto que pertenço a estas terras e a estas gentes, aos blocos de granito imponentes, às lâminas de xisto brilhando ao Sol, à "minha" Malcata, onde infelizmente já não correm os linces, mas em cujas encostas verdejantes cantam as águas que se juntam no Côa, no Bazágueda, na ribeira da Meimoa.
Ao longo de mais de 30 anos, a minha paixão por estas terras foi-me levando a calcorrear cabeços e vales, das paisagens ribeirinhas do Côa às serras do Homem de Pedra, de Aldeia Velha, das Mezas, por trilhos de lobos e de javalis, por barrocos e nascentes.
Conheci os Urejais, as Fontes Lares, as Colesmas, o vale dos Abedoeiros, o vale da Maria, a Fonte Moura, o Nabo da Cresta, o Alcambar; de Vale de Espinho cheguei a Valverde, subi à Pedra Monteira, ao barroco ratchado, percorri os caminhos da Ventosa e do Espigal, da Malhada do Barroso, do Poço do Inferno, da Marvana; passei a Quinta do Major, fui ao Fragão, ao Salgueirinho, aos moinhos do Bazágueda, ao Vale Longo, às Quelhinhas ... e a tantos e tantos outros lugares cheios de energia telúrica, convidativos à poesia, à contemplação, à meditação.
A maioria destes caminhos fi-los sozinho, só eu e a Natureza, numa verdadeira melodia a 4 estações, por vezes partindo antes de o Sol raiar, precisamente para o ir ver levantar-se ante a imponência das fragas e do horizonte a perder de vista. Só assim se vivem e se sentem os ares, os sons, os cheiros da Natureza.
Este filme é a minha singela homenagem a estas terras de encanto e
encantamento, às suas raízes e tradições, a todas estas cores, sons e
cheiros, às vozes das suas gentes simples e sãs, para quem a roda das
estações gira ao sabor das melodias de uma Natureza agreste, inspiradora e
saudável."
Sem nele ter tido aparentemente origem, o mundo rural sempre me fascinou. Aqui, na "minha" Vale de Espinho, sinto que pertenço a estas terras e a estas gentes, aos blocos de granito imponentes, às lâminas de xisto brilhando ao Sol, à "minha" Malcata, onde infelizmente já não correm os linces, mas em cujas encostas verdejantes cantam as águas que se juntam no Côa, no Bazágueda, na ribeira da Meimoa.
Ao longo de mais de 30 anos, a minha paixão por estas terras foi-me levando a calcorrear cabeços e vales, das paisagens ribeirinhas do Côa às serras do Homem de Pedra, de Aldeia Velha, das Mezas, por trilhos de lobos e de javalis, por barrocos e nascentes.
Conheci os Urejais, as Fontes Lares, as Colesmas, o vale dos Abedoeiros, o vale da Maria, a Fonte Moura, o Nabo da Cresta, o Alcambar; de Vale de Espinho cheguei a Valverde, subi à Pedra Monteira, ao barroco ratchado, percorri os caminhos da Ventosa e do Espigal, da Malhada do Barroso, do Poço do Inferno, da Marvana; passei a Quinta do Major, fui ao Fragão, ao Salgueirinho, aos moinhos do Bazágueda, ao Vale Longo, às Quelhinhas ... e a tantos e tantos outros lugares cheios de energia telúrica, convidativos à poesia, à contemplação, à meditação.
A maioria destes caminhos fi-los sozinho, só eu e a Natureza, numa verdadeira melodia a 4 estações, por vezes partindo antes de o Sol raiar, precisamente para o ir ver levantar-se ante a imponência das fragas e do horizonte a perder de vista. Só assim se vivem e se sentem os ares, os sons, os cheiros da Natureza.
Nas Veigas com o avô Quim, 19 de Abril de 1973 |
Mas voltemos a recuar no tempo. Aqueles 5 dias de Abril de 1973 foram inesquecíveis. Conheci os avós da minha "tão linda
Fontes Lares, foto "histórica" no barroco "sagrado", 1963 |
E, claro, o Côa, ali ainda relativamente perto da nascente, antes de atravessar toda a Beira Alta e se precipitar no Douro. Que saudades do velho Freixial, das Aleguinhas, das trutas que víamos correr nas águas cristalinas e gélidas.
A minha arraiana e os pais ficaram em casa da avó materna; eu, claro ... fiquei em casa dos avós paternos. E mesmo assim, em 1973, já era uma grande ousadia alguém de fora querer "roubar" uma moça da aldeia. Sempre que um rapaz de fora iniciava namoro com alguma, era autuado pelos da terra, isto é, intimado a pagar a "patenta". Esta constava geralmente de um cântaro de vinho, acompanhado por tremoços e amendoins e, por vezes, por uma bucha – pão com chouriço ou com outro petisco. As raparigas envolvidas nesses namoros sentiam-se, por um lado, envaidecidas por serem procuradas, mas ao mesmo tempo criticadas face à aceitação de um rapaz de fora. A recusa do pagamento da patenta podia ser interpretada como querer fazer pouco, não só da rapariga como da rapaziada local. O forasteiro ou assumia e pagava, ou desandava dali. Contudo ... nunca paguei a patenta...J! Talvez porque a rapaziada de Vale de Espinho já sabia que eu viria a ser filho adoptivo da raia...J!
Fontes Lares, 20 de Abril de 1973 Freixial, Rio Côa, 21 de Abril de 1973 |
Tal como o filme de 2006, este artigo é dedicado à memória do meu saudoso sogro, José Clemente Malhadas, o "Zé Malhadinhas", filho de Vale de Espinho e das terras raianas.
19 de Janeiro de 2011
4 comentários:
Por todos os motivos e mais algum ... este artigo sou 'obrigado' a comentar ... só para dizer bem haja a tudo o que está descrito, e às saudades do que está descrito, sejam passadas, presentes ou futuras ...
E a caminhada da vida levou o nosso "rapaz pacato", até aí da Cidade, para a zona raiana, onde a vida era, toda ela, pacata e onde ele havia de descobrir, o significado da expressão "ter uma terra"! Também neste caso, foi paixão ao primeiro encontro, pelas serras, pelos lameiros, pelos moínhos, pelo Côa, pelas gentes, como transparece desta crónica que relata a descoberta da zona de Vale de Espinho. Sentem-se aqui, ainda hoje, o calor e as emoções que tu sentiste, em Abril de 1973!
Um abraço.
Mousinho
Obrigado, Mousinho, pelas tuas palavras também sempre calorosas. Não se tendo proporcionado um acompanhamento nas vivências relatadas, o calor da tua e da vossa amizade tem-nos de qualquer modo acompanhado sempre, desde os bancos da velhinha Faculdade de Ciências. E é o calor das amizades que dá sentido à vida.
Um abraço.
Caro Zé Carlos
Achei piada à controversa "Patenta", porque eu também não paguei. Embora o Zé André me tivesse contactado para tal. Mas com uns copinhos na altura e a azáfama da ocasião tudo se esqueceu.
Um abraço
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